domingo, 31 de janeiro de 2021

Retratos

A imagem abaixo me remete para meados da década de 80, quando o "retrato foi batido". Ao fundo, a praça que ficava em frente a minha casa, na epoca. Não era praça ainda e também não era carinhosamente chamada por nós de "pracinha"

Naquele tempo - e até alguns anos atrás - era comum em algumas tardes passar um viajante com seu burro ou carneiro "colorido" em busca de algum "modelo" para fazer uma foto.

Quando ficavam sabendo, as mães já tratavam de pegar os filhos, dar um banho, engomava os cabelos e penteavam de lado para fazer uma foto para recordação de infância. Essa era a produção já pensando na melhor lembrança para a eternidade.

No dia dessa foto eu me lembro como se fosse ontem. Cheguei em casa da escola, tomei um banho como minha mãe havia mandado, pois fazia muito calor, almocei um prato de arroz, feijão e ovos com farinha de mandioca.

Depois de assistir um pouco de TV, na antiga Sanyo Preto e Branco (daquelas ainda de madeira) sentei a beira do portão - não havia calçada ainda. São José dos Campos, já tinha decolado como cidade promissora, mas a Vila Tesouro ainda era um bebê. Não demorou muito tempo quando ele apontou na esquina do "bar do Bigode" e veio em direção à minha casa atraído pelo barulho de crianças brincando. Para ele era uma oportunidade.

Corri pra chamar a minha mãe que veio apressada pensando ser algo importante. A expressão abatida não segredava o cansaço de quem passara quase o dia todo a beira do tanque. Enxugou as mãos na barra da camiseta, a barriga molhada do enxaguar das roupas. Atras dela veio também meu irmão que estava brincando ali perto, no quintal que não muito grande.

Um misto de ansiedade e euforia daquele momento tão importante pra mim me fez perder a ponta do dedão do pé esquerdo numa pedra cravada no chão batido do corredor.

Chorando de dor e com minha mãe ali do meu lado, abracei sua cintura encostando meu rosto no seu ventre molhado e, apesar de frio, me protegia com o seu calor de mãe. Ela, com paciência, ajeitou meus meus cabelos e, orgulhosa, me observava de longe enquanto aquele moço "fazia" a minha foto.

Mãe, tenha a certeza, aquele dia foi muito importante. Mais do que pela foto, foi meu presente de dia das crianças, aniversário, Natal e foi o melhor presente que um menino da minha idade, naquela época, nas nossas condições, poderia ganhar...

Valorize momentos simples carregados de detalhes importantes e, acima de tudo, capriche nos encontros imperfeitos, pois eles podem ser os últimos.

1985, sem a tampa do dedão do pé esquerdo e sem um carneiro colorido 
porque o dinheiro não deu.


sábado, 30 de janeiro de 2021

Reencontro

Por Douglas Lugano

Vou pegar uma estrada que me leva a um destino incerto. Não sei o que há além da paisagem que consigo enxergar.

Abandono bagagens que me pesam os ombros e sinto o alívio das dores desse mundo. Nada mais me dói, nem mesmo as feridas incicatrizadas trazidas do passado no meu íntimo.

Nesse caminho interminável, o pedágio tem um preço alto, mas o destino é compensador. É nele que contemplo o sol, o céu e os campos verdejantes da música que conforta nos momentos mais precisos.

Trago comigo o desejo sagrado do encontro e o anseio pela resignificação do ser e existir. Porque em mim tudo é passageiro.

Sacrário vivo, divino, num humano excomungado, que leva o Criador como seu passageiro na esperança de ser plenificado no caminho

No rádio não há músicas apaixonadas. Nessa viagem, apenas o som do vento cortado pela velocidade de quem tem pressa de chegar.

Sem destino perto, só o rencontro é certo.




sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Pão. Alimento e benção.

Meu pai sempre me ensinava que mesmo quando você não tiver nada pra oferecer a alguém, era pra "fazer algo você mesmo".

Me dizia isso porque no começo não tínhamos tantos recursos e eu me sentia constrangido por recusar sair com os amigos por questões financeiras.

Essa idéia de fazer algo eu mantive comigo, mesmo que as condições tenham melhorado. 

Sempre que faço alguma coisa para nós aqui em casa eu fico pensando de como seria bom se alguém de fora estivesse a mesa conosco.

Infelizmente não consigo o feito de ter uma mesa grande onde caibam todos que eu gostaria de ter num café ou almoço.

Então eu adotei uma prática. É minha, silenciosa. 

Fazer pães é algo simples, mas é um gesto cheio de generosidade. Os ingredientes são simples. Mas nele tem o tempo, o cuidado, a paciência, o dom, a disponibilidade e, principalmente, o carinho ao fazer e mais ainda, sabendo para quem vai.

Pães de fermentação natural, assados em panela de barro
Foto: Douglas Luganoo

Eu não vendo pães. Os pães que eu faço em casa são preparados em receitas dobradas. Um sempre é pra quem eu gostaria que estivesse aqui comigo, tomando um café conosco, fazendo parte dessa partilha de tempo, de atenção, de amizade, de amor e do alimento.

Meu pai me ensinou a ser amigo das pessoas. Talvez pelo fato de ele sentir falta disso em relação a ele, principalmente de quem ele mais esperava...

O que ele fazia questão de ensinar, era que devemos nos importar e procurar estarmos próximos. E foi assim até o fim, mesmo nos seus últimos dias na UTI do hospital.

Se você um dia receber um dos meus pães, saiba que eu gostaria muito de tomar um café contigo.

E o pão é só uma forma de aproximar...



Minha irmã Alessandra e meu pai.
2014, Paraibuna/SP
Foto: Douglas Lugano


quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Encontro de almas

Por Douglas Lugano

"... numa manhã de sábado, fria, que te obriga a esconder o rosto devido ao sopro gelado dos ventos, da Paulista, fui me aproximando da rampa de uma rua ingrime do lado oeste daquele bairro nobre da cidade. Parei antes numa banca, cumprimentei o rapaz retribuindo seu "bom dia" e depois de um breve, porém amistoso aperto de mão, retirei uma nota do bolso esquerdo da calça jeans e levei um arranjo de flores. Embora fossem as rosas suas preferidas, arrisquei-me em comprar um ramalhete de uma tonalidade bem clarinha, como se fossem taças de champanhe com morango. (...)

Finalmente cheguei ao hospital, me encaminhei até a porta do elevador acionando o botão para subir.

Sétimo andar, enfim, foram os quarenta segundos mais eternos da minha vida até então. Meu coração batia em sincronia dos ritmos dos cabos se movendo acima de nós, até que parou. Observei se ele estivesse mesmo parado naquele andar conforme instrução da placa acima e a direita do batente, ao lado do botão de emergencia.

A porta se abriu e eu já estava na antessala. Eu já podia vê-la sentada sobre um sofá azul, da cor do céu, com as pernas cruzadas arrumando os poucos cabelos que insistiam em tentar renascer, olhando para o longe em meio aos prédios das mais variadas formas, tamanhos, e cores.

Ela vestia uma camiseta branca, customizada por ela mesma eu acho, os ombros a mostra e um short jeans. Ela estava radiante. O sol a iluminava e ao mesmo tempo, tentava sem sucesso, aquece-la devido ao frio que fazia naquele dia. A cena me remetia àqueles quadros de anjos da guarda com aqueles fachos de luz sobre a cabeça, por isso, não tinha como duvidar da presença de Deus naquele recinto.

Havia paz, a atmosfera era surreal, mistico e por um instante permaneci em silencio, sem ação. Um silencio que foi quebrado com o ranger da porta do elevador se fechando, foi então que apareceram as pessoas que estavam alí com ela. Brotaram das laterais, por detrás da parede que separava o quarto da antessala.

Ela se virou e sua beleza cegante fora violada pelo meu olhar tímido, nervoso e, ao mesmo tempo, ansioso. Se levantou, veio em minha direção, seu braço esquerdo pendia um cateter, me aproximei e com todo o cuidado nos abraçamos – eu tremulo. Meus olhos se encheram de lágrimas que desconheciam suas razões. Senti o cheiro de seu hidratante – baunilha. Ela deu um passo para trás, com as duas mãos apalpando meus braços me olhou e disse “Douglas, você veio!”

(...) Não pude acreditar que aquela menina, em sua tenra idade, se deixara vencer por uma doença tola. Perdeu a luta para um câncer. Jéssica morreu antes mesmo que sua adolescência conhecesse uma nova primavera. Muito antes de sorrir para o sol no verão. O tempo abreviou seus planos de conhecer a florada de ypês amarelos. Morrer no inverno tornava mais triste cada novo crepúsculo.

(...) Já era outubro e eu havia prometido passar o dia das crianças no hospital. Os livros já estavam embalados assim como o restante dos brinquedos. Mas antes de tudo, eu ainda teria um outro compromisso a ser cumprido. Em São Caetano, região do ABC Paulista, na paróquia Nossa Senhora Aparecida ...

(Continua no livro)

10 de Agosto de 2008 - Sobre Meninos e Heróis #DiaDeNossasVidas #MeuLivro

Imagem: internet/Google

A travessia

Desde que mergulhei nesse grande mundo da gastronomia, acredito que em 1993, passei por vários lugares na esperança de aprender e deixar o meu melhor.

Sempre fui intenso em tudo que me era confiado, talvez pelo signo, escorpião, embora eu não creia muito nisso. Me orgulho em dizer que até hoje sou assim.


Os anos de "Note e anote" na TV Record, me proporcionaram as melhores experiências antes mesmo de adentrar pelo portal sem volta de uma cozinha. Não conheci um mestre dos magos, mas precisei desbravar um mundo até então desconhecido. Descobri que não era preciso afagar o ego de "chefs pra se garantir na casa", como acham a maioria, mas mostrei que agregar era obviamente o correto a se fazer.

Me lembro que no supermercado onde trabalhei, em 1994, enquanto passava pelo caixa as mercadorias dos clientes, eu observava as receitas que ilustravam os rótulos e as caixas. Um dia resolvi apostar num lombo de porco com molho de laranja que o saudoso Cauby Peixoto preparava na cozinha da Ana Maria Braga, e deu certo! A preocupação do meu pai começou aí.

Ainda no supermercado, depois de organizar meu setor, passava as tardes na padaria ajudando o padeiro. Os pães de frios eram os mais esperados e faziam fila congestionando o corredor para a fornada das 14:00.

Depois disso, quase em 2001, após deixar o supermercado, busquei uma vaga numa padaria do bairro. E é claro que tentei fazer o tal pão, mas como a maioria sabe, se não for a receita do padeiro a ideia não entra.




Nesse meio tempo, eu já era o cozinheiro oficial da minha roda de amigos, o churrasqueiro que ninguém queria o avental e, até o boleiro de casa quando minha mãe não descolava os olhos do Vale a pena ver de novo.

Em 2007, em São Paulo, nas idas ao hospital por conta de um CBC no rosto, conheci o Tony, um marombeiro que amava cozinhar e respirava academia. Ele queria transformar o restaurante do pai em um bistrô de comida orgânica. "É a sua cara!" Instigava ele. Topei.

Os risotos cheios de cremosidade não saíram do cardápio, mas dividiram espaço ao arroz integral enriquecido com legumes, cortados micromilimetricamente e sementes ativadas. Os purês aos poucos andavam lado a lado com batatas assadas, o frango ganhava um aroma de manteiga, os molhos carregados de roux e vinhos ficaram muito mais light. E os peixes acompanhavam legumes no vapor. Calor naquela cozinha pequena não faltava.

Conciliando cozinha, academia e lazer eu me sentia em casa. Dormia 5 horas por noite e quando realmente despertava, estava tomando café com o Léo, no mercado. Em dias de peixe, já ia direto da academia. Catabolizava, obvio.

Tudo parecia estar perfeito, até perdermos o grande incentivador da casa. O Tony avó faleceu, desanimando o Tony pai. Foi difícil pro Tony filho levantar a cabeça, mesmo eu me propondo a tocar o barco enquanto passasse o luto, podia levar o tempo que fosse preciso, eu não me importava em ajudar, mas preferiram encaixotar as lembranças e apagar as luzes de uma cozinha cheia de brilho próprio.

Resolvi mudar de ares tambem. Tempos depois em 2009, já estava fazendo pães de novo e, meses antes do Natal, uma fornada de panetones perfumavam um supermercado as 15:00 e, por incrível que pareça, consegui colocar a receita do pão de frios na casa. Mas paramos porque ofuscava a venda de outros produtos. Essa foi a desculpa, mas eu sabia que o motivo era outro - aquele. Não importa.

Entre idas e vindas da "cozinha" pra "logística" e da "administração" para o voluntariado, já confiante na mão e no paladar, ainda tive oportunidade de ajudar a organizar almoços beneficentes, pastel de fim de semana na cozinha da paróquia, motivado pelo pároco daquela época, eventos dos quais sinto falta, das aventuras em cozinhas com histórias inimagináveis, dos churrascos com os amigos. (Vírus maldito! (Covid-19).

Eu já tinha desistido, até que alguém me encorajou a continuar. Foi então que em no final de 2013, um anúncio numa rede social me provocou "preciso de um auxiliar de cozinha, urgente". Era tentador, uma cozinha de outro mundo nesse imenso mundo desconhecido da gastronomia, fiquei lá por duas temporadas. Foi minha escola pra cozinha e pra vida.


Sobremesa autoral, o BR. No cardápio,
Due de chocolate
Foto: Douglas Lugano

2018 ainda não havia terminado, mas deu tempo pra uma oportunidade nova de ter uma cozinha sob meu olhar por quase dois anos que só deixei para realizar aquele sonho lá dos tempos do mercado: Uma cozinha minha, do meu jeito. De novo, tinha tudo pra dar certo. "Vírus maldito!" (Covid-19).

Hoje relembrando um pouco do meu início, percebi que cozinha não é só trabalho, mexer panelas e servir. Tem de ter tesão e afeto intenso no que faz. Talvez seja por passar por tudo isso, eu ainda não tenha desistido e buscado o portal que me trouxesse de volta a um mundo que para todos seja real.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

 Caipira

(por Douglas Lugano )

Existem momentos no nosso dia-dia, nos quais são possíveis sentir a presença de Deus afagando nosso rosto; Ele toma a enxada de nossas mãos e, nesse simples gesto Ele diz: "Deixa pra amanhã, meu filho. É hora de descansar" . Agindo humanamente, num gesto divino recebido como dom, o homem no campo tira seu chapéu da cabeça, enxuga o suor do seu rosto molhado com a manga da camisa já surrada, que o protegeu do sol em sua labuta e apenas agradece pelo cansaço. . Esse humilde rito, que se repete todas as tardes, é preludio à ação de graças daquele que se faz humilde não só nas palavras, mas também pela sua casa coberta por uma atmosfera fina e densa da fumaça de um fogão à lenha; é mais que uma oração. . Por mais cansado que esteja, o homem pede a Deus que o proteja. Olhando pro céu que "troveja" em nuvens de cor de cereja, no crepúsculo daquela tarde; mais um dia que passou. . A noite é para ele uma esperança de renovação, na aurora de um amanhã que é promessa e ontem era uma incerteza. Noite que outrora era apenas trevas e que agora deu lugar a luz. . Deus que faz do sol seu sorriso, nesse calor que já aquece, desde que amanhece; É Deus que te conhece, sabe o que te entristece. E mesmo com suas lutas, d'Ele você não esquece. E mesmo assim agradece. . "Texto foi escrito em 2014, inspirado num dia de trabalho do sr. Antônio, pai do meu cunhado que o afamava de um caipira legítimo. O conheci desde que meu cunhado começou a namorar a minha irmã. Faleceu em Fevereiro de 2020, P.S. faleceu me devendo uma cabra de leite'" . (Douglas Lugano, autor de "Dia de nossas vidas")